Cuidados com a coleção
Pesquisador, galerista e colecionador, Oto Dias Becker Reifschneider é bacharel em História, mestre em Sociologia e doutor em Ciência da Informação.
Quando a arte entra em nossas vidas, e começamos a montar uma coleção, surgem dúvidas sobre como melhor preservar as peças adquiridas. Não existe uma fórmula única que possa ser aplicada a todas as coleções, a toda e qualquer obra, ou colecionador. É preciso atingir um equilíbrio entre aspectos financeiros, estéticos e a preservação da obra de arte. Precisamos conhecer um pouco mais dos cuidados a serem tomados, para que o prazer da convivência com as obras e sua fruição seja o mais longevo possível. Nesse texto, escolhemos tratar especificamente de obras que tenham o papel como suporte: gravuras, desenhos e, até, pinturas.
Muitas vezes, imagina-se – erroneamente – que o papel é frágil e que, assim sendo, a peça elaborada nesse suporte se torna uma obra menor. Está claro que o papel tem suas especificidades – fogo e água, por exemplo, são inimigos mortais -, mas, se bem preservado, e de boa qualidade, ele poderá ser tão ou mais longevo que outros suportes. Afinal, papel não quebra e pode ser restaurado, seu transporte é mais simples, e existem núcleos de pesquisa no mundo inteiro dedicados ao seu estudo.
A longevidade de um papel depende de fatores internos e externos. Comecemos pelos primeiros. Se compostos por fibras longas, por exemplo, são mais duráveis, mais flexíveis. Se forem de polpa de madeira – digamos de meados do século XX, do período do entreguerras – com frequência possuem baixa qualidade, com muitas impurezas. Por esses fatores e pela idade, já se encontram profundamente acidificados e quebradiços. No entanto, mesmo um papel desse tipo, com tratamento adequado, pode ter sua vida estendida de algumas décadas para mais de uma centena de anos.
Se os fatores internos, para serem tratados, exigem o cuidado de especialistas – restauradores e químicos -, os fatores externos podem ser, em grande medida, controlados pelos colecionadores. Estamos tratando, afinal, de luminosidade e umidade, de cuidados no manuseio, na montagem e na exposição das obras.
A luminosidade é um dos grandes vilões do papel, pois desencadeia o processo de fotodegradação, causada especialmente pelos raios ultravioleta. As obras emolduradas, portanto, estão permanentemente expostas a esse processo. Podemos tentar controlar a exposição da obra em si com materiais especiais, como o uso de vidro museológico (um artigo de luxo, especialmente no Brasil, onde tem preço bastante elevado), ou com equacionamento da luz no ambiente, por meio de filmes, cortinas e persianas. Toda barreira ou filtro ajuda na preservação da obra. Ressalte-se que não apenas o papel sofre com a luz, mas também as tintas, em especial algumas mais instáveis, como o vermelho. Essa instabilidade ocorre por conta de sua composição química. Quem já deixou alguma revista ou livro perto da janela terá notado como o vermelho em pouco tempo (semanas/meses) se esvai, até quase desaparecer por completo. O preto, por outro lado, costuma ser muitíssimo estável.
Qual a vantagem de ter essas noções básicas? Bem, ao decorar sua casa, ao distribuir as peças nas paredes, deixe os vermelhos mais protegidos! Se tiver alguma peça com um suporte mais frágil, com algum papel comum, como a produção elaborada em máquinas reprográficas dos anos 1970, é bom manter longe de luz mais forte. Será preciso guardá-las em mapotecas, em pastas fechadas, completamente longe da luz? Diria que essa é uma decisão individual, em que se pese o prazer de apreciar a obra exposta versus sua longevidade se acondicionada de forma considerada ideal. Os colecionadores, em suas moradas, não precisam agir exatamente como repositórios institucionais.
Outro grande vilão do papel é a umidade. Os problemas são diversos: seu excesso ou falta são prejudiciais, assim como flutuações bruscas (normalmente aliadas a variação de temperatura). Não é nada fácil manter condições climáticas controladas, mas o uso pontual de desumidificadores em ambientes que peçam esse recurso podem ajudar na manutenção do acervo. É preciso também manter as obras de arte distantes de paredes úmidas, como as dos banheiros, que são diariamente molhadas. O mesmo vale para paredes externas. Se isso não for possível, distanciar as obras das paredes para que o ar circule livremente por trás será de grande importância. Isso pode ser feito com borrachinhas, bolinhas de silicone ou qualquer aparato que afaste a obra sem danificar a parede. A umidade controlada protege a obra do aparecimento e crescimento de mofo, entre outros malefícios.
Ao manipular as obras de arte em papel, é preciso ter sempre em mente que as substâncias em nossas mãos (suor, sujeiras) podem manchar o trabalho. Manuais clássicos de restauro indicam mesmo a montagem de gravuras de uma forma tal que as margens tocadas não pertençam à obra. É importante também não raspar o papel, não puxar uma folha em meio a muitas outras, pois o atrito pode tanto causar algum rasgo, como pode polir alguma parte da obra que sofra pressão, e esse brilho dificilmente poderá ser desfeito. Ao embalar obras para envio, se for necessário utilizar tubos, deve-se evitar enrolar demais o papel, do contrário as fibras, ou a camada pictórica, podem craquelar – um dano permanente. Se for imprescindível anotar algo no papel [não aconselhamos mesmo!], que isso seja feito a lápis, nas bordas, sempre longe da área pictórica. Uso de canetas, mesmo de pH neutro, jamais.
Vamos, por fim, tratar de um tema delicado: como emoldurar nossas obras. Existe, hoje em dia, uma gama de produtos apropriados, com qualidade museológica, para emoldurar e preservar obras em papel. Não é sempre, no entanto, que encontramos esses produtos por aqui no Brasil – ou que eles estão a nosso alcance por conta dos custos. Como já mencionamos, os vidros de museu são realmente caros e acabam sendo utilizados apenas para obras especialmente valiosas. O verso da moldura, por sua vez, é também importantíssimo e, muitas vezes, tratado de forma descuidada. O mais indicado entre os produtos comuns são pranchas foamboard, uma espuma recoberta com uma camada de papel, por vezes plastificada (por vezes chamadas de ‘foã’, como se francesas fossem). Existem qualidades melhores (nota-se pelo toque de papel) e outras não tão boas, mas mesmo essas são mais indicadas que os materiais pesados, ácidos, ainda muito utilizados. Como último recurso, ou de forma provisória, é possível inserir uma folha de papel comum, neutro, como barreira entre a obra e o fundo. Tal procedimento pode ajudar em muito a preservação. Se for usado um papel mais espesso, com reserva alcalina, tanto melhor.
Montar as obras no fundo de forma permanente não é uma boa ideia: materiais diferentes trabalham de forma diferente. Se for imperioso, que se faça com alguma cola ou fita reversível, sobre suporte de pH neutro. Falando em fitas, ao montar as gravuras e desenhos, é importantíssimo que se utilize uma fita apropriada, neutra. Essas fitas são, sim, mais caras que as comuns, mas, quando se diluem os gastos pela grande quantidade de obras que pode ser montada com apenas uma delas, o custo passa a ser insignificante. Fitas comuns, de qualidade ruim, marcam os papéis de forma permanente, as manchas muitas vezes atravessam as fibras de um lado ao outro. O passe-partout, assim como o restante do material, precisa ser de pH neutro. Quando esse passe-partout não é apropriado o miolo começa a escurecer, por conta da concentração da acidez, que é então projetada para toda a área adjacente da obra. Essa mancha que se vai criando dificilmente poderá ser restaurada por completo. Quando se emoldura uma obra, é também importante observar que, em geral, prende-se o papel em poucos pontos, na parte superior, de modo a deixar que ele respire e que as fibras trabalhem ao longo do ano, com as variações climáticas. Querer que ele fique rigorosamente liso e esticado vai de encontro à natureza do papel, e acaba por gerar tensões e danos na obra.
A questão da acidez, já mencionada no texto, é fulcral na manutenção das obras em papel. A acidez vai se formando naturalmente, e essa formação pode ser reduzida ou acelerada, a depender dos cuidados que tivermos com a obra. A acidez não se forma apenas dentro de cada uma das obras, mas pode migrar entre peças – o que ocorre com frequência e rapidez quando se utilizam materiais de baixa qualidade nas molduras. Ao guardar um papel acidificado próximo de outro que não o esteja, é sempre bom utilizar folhas neutras para intercalar as obras. O mesmo vale para o mofo. Na verdade, com fungos em geral, o melhor mesmo é isolar as peças infectadas, para que elas não contaminem as outras. Quarentena não se aplica apenas à pandemia.
E a questão dos poluentes, dos insetos – traças, cupins e carunchos – e ainda do restauro, como fica? Bem, essas questões merecem mais algumas laudas! Deixamos essas e outras que surjam para uma próxima ocasião.